Fig. 1: A poética dos lugares, montagem fotográfica de M. Luísa Costa
i+Diseño | Vol. 9 | Abril | Año VI
Maria Luísa Costa1
Faculdade de Arquitectura. Universidad de Lisboa
Resumo
As novas realidades sociais e culturais originadas pela globalização constituem desafios para o design de comunicação, exigindo uma intervenção sistemática na criação de dinâmicas que se assumem como pontes de acesso à inteligibilidade do patrimônio cultural imaterial. Agindo no espaço público, um lugar privilegiado para a fruição deste património, design irá incrementar a identidade visual da cidade e da identidade cultural dos seus habitantes, através do reforço do espírito do lugar ea valorização de suas características mais genuínas, em um âmbito histórico, bem como cultural e de vida.
Palavras-chave: design, comunicação, patrimônio imaterial, cidade, identidade.
Visual identity and poetic places
Abstract
The new social and cultural realities originated by the globalization constitute challenges to communication design, demanding a systematic intervention in the creation of dynamics that assume themselves as access bridges to the intelligibility of the intangible cultural heritage. Acting in the public space, a privileged place for the fruition of this heritage, design will increment the visual identity of the city and the cultural identity of its inhabitants, through the reinforcement of the place's spirit and the enhancement of its most genuine characteristics, on a historical ambit, as well as cultural and living.
Keywords: design, communication, intangible heritage, city, identity
Introdução
Este artigo decorre de uma investigação, que está a ser desenvolvida no âmbito de um doutoramento em design, e tem por objectivo comprovar a importância que o design poderá vir a assumir na inteligibilidade e fruição do património intangível, bem como, na sua consequente e necessária, preservação. A necessidade de preservação do Património Intangível, decorre das dinâmicas que a globalização tem vindo a introduzir nas sociedades contemporâneas, assim como da importância que este assume na diversidade cultural e na identidade dos cidadãos. A comprovar esta necessidade, encontram-se as sucessivas recomendações da UNESCO que culminaram com a "Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial" em 2003.
O design, enquanto disciplina holística de visão global e transdisciplinar, poderá contribuir de modo eficaz para o bem-estar social e para a defesa das especificidades culturais locais. No que se refere ao Património Intangível, o design deve actuar por forma a não se limitar apenas às práticas necessárias, mas só por si redutoras, como sejam as de registo e inventariação, devendo a sua actuação assentar em procedimentos que propiciem dinâmicas e experiências sensoriais, mantendo-o vivo e em estreita ligação com as populações, aprofundando sentimentos de pertença e de identidade, construindo recursos para o desenvolvimento e consolidação de uma cultura local aberta aos fluxos globais e à contemporaneidade.
Considerando-se o espaço público como lugar privilegiado para a dinamização do património cultural intangível, considera-se, também, que este será o espaço referencial para a produção e transmissão de mensagens no âmbito do design, mensagens, estas, que possibilitarão o conhecimento e a fruição do património, enfatizando as especificidades de cada lugar e contribuindo para que a identidade local seja preservada, estimulando em simultâneo a diversidade cultural.
Colaborar num redesenho da sociedade, constitui um desafio ao qual os designers não podem permanecer indiferentes. A dinamização e preservação do património intangível, constituirá, certamente, uma oportunidade e uma necessidade relevantes na sociedade global em que hoje se vive.
Design e sociedade e cultura
"Ser designer é uma opção cultural: os designers criam cultura, experiências e significados (…) Ao tornar possível o significado, o designer converte-se num criador de cultura"2, esta definição afigura-se reveladora do papel dos designers na sociedade contemporânea, enquanto participantes, de modo determinante e efectivo, em todas as mudanças sociais e culturais. O protagonismo que lhes é atribuído, determina uma responsabilidade acrescida na forma como produzem mensagens, para onde direccionam a sua atenção, ao serviço de quem colocam o seu saber, a sua experiência e as suas capacidades comunicativas.
No século XXI, a globalização e a sociedade de informação colocam novos desafios ao designer, suscitando uma reavaliação da sua ética e prática profissional face às novas realidades. Estas realidades afirmam-se num contexto global, caracterizam-se pelas facilidades comunicacionais e pelo acesso generalizado à informação. Estes factos por si só, são benéficos para a sociedade e para a cultura, mas exigem no entanto, por parte dos designers, uma atitude consciente enquanto produtores e transmissores privilegiados de mensagens. Paralelamente a esta realidade, ocorre uma tendência com contornos menos auspiciosos para as sociedades e culturas locais, a qual radica no risco de indiferenciação, de uniformização e de anulação da diversidade.
Esta tendência deve ser contrariada através de uma investigação no âmbito do design, que inventarie necessidades e desenvolva processos criativos que permitam o reconhecimento de idiossincrasias locais. Partindo desta metodologia, será possível ao design actuar localmente ao nível dessas mesmas idiossincrasias, criando significações e soluções no sentido de combater os seus pontos fracos, reconhecendo e enfatizando os seus pontos fortes. "Cada sociedade concreta terá de procurar identificar e potenciar no seio do sistema global as dinâmicas, as alianças, os eixos e os pólos que lhe podem proporcionar maiores vantagens na prossecução dos seus objectivos próprios, designadamente de robustecimento interno, autonomia relativa e capacidade de afirmação externa"3.
O design, através de uma prática projectual rigorosa e criativa, pode criar signos de teor cognitivo e estético que actuem como motor para o desenvolvimento destes pressupostos, acautelando riscos e accionando mecanismos para a preservação das especificidades locais e para a promoção da diversidade cultural.
Design, cidades e património
Parece não restarem dúvidas, quanto ao facto de vivermos numa sociedade onde a informação circula e se dissemina rapidamente sob os mais diversos meios e suportes, permitindo o seu cruzamento e processamento, produzindo conhecimento. Todavia, um conhecimento sustentado, necessita de assentar no respeito pela diversidade. Importa pois reflectir, sob o ponto de vista da prática projectual de design, sobre o que é, e de que modo esta diversidade pode ser protegida e amplificada, bem como de que modo esta se forja nas experiências e vivências locais, quais as práticas para construção e preservação da identidade cultural das cidades e dos seus habitantes.
Actualmente, a identidade das cidades não difere profundamente da identidade corporativa das empresas, pois tanto uma quanto outra, transmitem a sua missão e os seus valores através da linguagem visual, bem como dos seus produtos comunicacionais, sejam de uso ou simbólicos.
Concorrendo entre si, as cidades procuram assumir um protagonismo que lhes assegure o desenvolvimento social, económico e cultural necessário à sua competitividade e sustentabilidade. A este respeito Julier refere: "cada vez com maior frequência os centros urbanos, as regiões e os países posicionam-se como marcas no mercado"4 e neste sentido, o designer é mais uma vez convocado a intervir, na concepção e implementação de imagens identitárias significantes e coerentes.
Todavia, as imagens, das cidades não se esgotam na comunicação e assunção da sua materialidade e da sua dimensão visual. Edifícios, ruas e praças, são fundamentais na construção da imagem das cidades, mas é na sua dimensão cultural imaterial, na cultura enquanto espaço de consciência, de conhecimento e de desenvolvimento conceptual, que se manifestam as maiores diferenciações. É precisamente através desta, que cada cidade assume e exprime o que de mais singular e genuíno a caracteriza: a sua história, as suas tradições, as suas representações, emoções e percepções.
Esta dimensão, constitui o seu património cultural, parte integrante significativa e fundamental dessa identidade, tanto na sua dimensão material, de ordem edificada ou geográfica, mas acima de tudo na sua dimensão intangível que a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, promulgada pela UNESCO em 2003, define como "as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural"5, citando ainda esta convenção, refere-se porque razão se afigura necessária e urgente a salvaguarda do património intangível: "Reconhecendo que os processos de globalização e de transformação social, a par com as condições que contribuem para um diálogo renovado entre as comunidades acarretam, tal como os fenómenos de intolerância, graves ameaças de degradação, de desaparecimento e de destruição do património cultural imaterial, em especial, devido à falta de meios para a sua salvaguarda6.
Partindo desta enumeração e identificação de necessidades, afigura-se que aos designers, enquanto agentes com potencialidades para participar activamente nos processos que visam redesenhar a sociedade, é lançado um desafio que consiste em ponderar os meios e as fórmulas, os canais e mensagens a ter em conta para efectivar esta salvaguarda, uma vez que a sua prática não se pode confinar à identificação, catalogação e arquivo do património cultural intangível. Colocar em diálogo as dimensões materiais e imateriais do património, contemplando e reforçando os aspectos identitários dos cidadãos através da sua identificação com o património intangível, será uma forma de o manter vivo e de contribuir para esta salvaguarda.
Simultaneamente, ao proceder deste modo, estar-se-á a assumir as idiossincrasias locais, combatendo a tendência identificada por Fortuna sobre a possibilidade da 'reprodutibilidade' técnica da cidade, facto que deriva da implantação em qualquer cidade do mundo, das mesmas cadeias de pronto-a-vestir, de pronto-a-comer, dos mesmos hotéis e das mesmas lojas comerciais, perdendo as cidades a sua singularidade e todo o encanto que desta deriva7. Ao designer, enquanto emissor privilegiado na criação, codificação e produção de mensagens, caberá a tarefa de agir localmente possibilitando o acesso ao conhecimento das especificidades locais, projectando-as paralelamente no mundo global.
O espaço público é o lugar privilegiado de encontro dos cidadãos com a sua cidade, a sua história e as suas memórias. É no espaço público que se apreendem mensagens e é sobre ele que se constroem narrativas, reclamando intervenções dinâmicas e informativas que o tornem acessível ao cidadão "…as acessibilidades são também (e cada vez mais) a informação. Informar eficazmente pode melhorar os acessos (qualquer acesso); e aqui levantam-se questões de inclusividade para os deficientes motores, auditivos e invisuais, mas também (e sobretudo) dos analfabetos, dos iletrados culturais e dos estrangeiros"8.
Lugar de trocas afectivas e simbólicas entre cidadãos, e de encontro destes com a sua cidade, o espaço público revela-se como um espaço potencial de encontro com a cultura local, que só por si, poderá ser determinante na formação cultural dos indivíduos, se através dele forem veiculadas mensagens rigorosas, de ordem cultural e histórica, metafóricas ou simbólicas, através das quais se accionem mecanismos de interpretação e cognição.
Figura 2: Lisboa e poesia, montagem fotográfica de M. Luísa Costa – Poema de Vasco Graça Moura in Poesia – 1997/2000
A eficácia destas mensagens, no acesso ao conhecimento, será tanto mais efectiva, quanto mais conseguir proporcionar formas lúdicas e participativas de acção, práticas imprescindíveis ao homem contemporâneo, pois como refere Flusser, encontrarmo-nos cada vez mais interessados em consumir informações e cada vez menos possuir coisas, antevendo o novo Homem como um performer, Homo Ludens e não como um Homo Faber, para quem não importa ter ou fazer, mas sim conhecer, experimentar e vivenciar9.
Lisboa e poesia, um caso de estudo
No intuito de comprovar as premissas atrás descritas, encontra-se em desenvolvimento uma investigação no âmbito de um doutoramento em design, que pretende colocar em diálogo a cidade de Lisboa e a poesia que sobre ela foi escrita, tornando-a acessível à comunidade de cidadãos residentes, utentes e visitantes.
No caso de Lisboa, a imagem da cidade, poderia ser fortemente potenciada pela poesia. Este conceito deriva, por um lado da extensa produção literária identificada, dos múltiplos autores de referência dentro da literatura portuguesa que à cidade de Lisboa dedicaram um olhar enlevado e poético, o qual foi registado em forma de poesia escrita e que se encontra publicada. Por outro, assenta no facto da literatura ser património cultural e de se considerar a poesia como património cultural intangível, pois esta assume, enquanto manifestação da expressão oral e linguística, desde tempos longínquos uma forma muito particular de expressão dos portugueses. O património em estudo nesta investigação, é a poesia que foi escrita e publicada sobre Lisboa, desde o final do século XIX até à actualidade. A poesia enquanto património intangível, solicita ancoragem ao património edificado, necessitando em simultâneo de ser dada a conhecer na sua articulação com os lugares referenciais. Estes pressupostos deverão concretizar-se num projecto de design que defina um sistema organizativo, com base em itinerários culturais que revelem a poesia, o património e a poética da cidade, contribuindo deste modo para o reforço do espírito do lugar, conforme os princípios enunciados na declaração do ICOMOS sobre a preservação do 'Spiritu loci'10, potenciando a imagem identitária da cidade de Lisboa.
O projecto de design, alicerça-se nas novas tendências museológicas e museográficas que preconizam a participação alargada e efectiva por parte das comunidades, na preservação do seu património, revelando a poesia através itinerários que serão desenvolvidos num espaço que se pode considerar como 'território-museu' ou 'museu a céu aberto' e integram uma zona ligada "por vínculos históricos, geográficos com recursos patrimoniais e elementos que lhe conferem uma identidade própria"11.
No caso do património imaterial, o recurso ao pensamento e às práticas consagradas pela 'nova museologia' é indispensável como forma de o manter vivo e de instigar uma participação renovada, quer seja por fomentar a escrita poética, quer por dar continuidade ao processo de identificação de poemas, de lugares e à construção ou ampliação dos itinerários já identificados.
O projecto de design terá como objectivo final a sensibilização para este tipo de património, viabilizando a criação de processos dinâmicos que englobem novas conexões e permanentes reavaliações deste património, sob os auspícios da contemporaneidade.
Neste sentido, estão em estudo segundo a perspectiva de uma prática projectual, intervenções urbanas temporárias que possibilitem a inteligibilidade e a fruição deste património. Em paralelo, encontram-se em análise e desenvolvimento os meios e suportes a utilizar que permitam a identificação dos lugares de referência e a realização dos percursos, quer através do espaço geográfico quer no espaço virtual.
Está também prevista a construção de uma base de dados que aglutine toda a informação, com o objectivo de a tornar acessível e possibilitar o cruzamento das diferentes variáveis (poesia, autores, lugares da cidade), proporcionando deste modo, diferentes leituras e diferentes níveis de conhecimento, de acordo com a necessidade e vontade de cada cidadão. A estrutura destes percursos e os suportes gráficos a desenvolver, terão que permitir diversas escolhas e percepções da cidade, fomentando mais do que o simples conhecimento: uma experiência poética do lugar.
Por via da disponibilização online desta informação, bem como de mapas, pictogramas e símbolos, pretende-se incentivar a posterior participação das comunidades na construção de novas abordagens, de acordo com diferentes olhares e sensibilidades.
Conclusão
Do atrás referido, podemos concluir que o design assume um papel cada vez mais relevante na sociedade actual, estando-lhe implicitamente atribuído, numa era de globalização generalizada, um papel determinante na criação e veiculação de narrativas e representações que contribuam para a preservação do património cultural intangível, e em simultâneo, para o reforço e criação de imagens identitárias dos cidadãos e das cidades, actuando como catalisador da informação sobre as especificidades locais e na promoção da diversidade cultural.
Associando os conhecimentos teóricos à investigação e recorrendo à criatividade e à tecnologia, o design pode induzir múltiplas abordagens culturais, criativas e dinâmicas, no sentido de propiciar experiências lúdicas e participativas. Ao fazê-lo, estará a ir ao encontro dos anseios e motivações das populações, tornando possível por esta via, a consolidação de sentimentos de pertença, o reforço das identidades culturais e das suas memórias colectivas, contribuindo simultaneamente para o desenvolvimento económico, social e cultural, facilitando os processos cognitivos, por via da experiência física e emocional, podendo no caso presente, fornecer ferramentas que instiguem a literacia literária e visual.
Intervir socialmente na preservação cultural, nomeadamente no que se refere ao novo quadro de referência e abrangência do património cultural, será mais do que uma necessidade cultural, uma responsabilidade social e ética da prática projectual do designer numa época de globalização generalizada.
1Actualmente exerce a actividade de investigação em regime de exclusividade. Doutoranda em Design – Centro de Investigação em Arquitectura, Planeamento Urbanístico e Design – Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Título da tese: Design para a inteligibilidade e fruição do património intangível – Itinerários poéticos na cidade de Lisboa. Investigação com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia e da Fundação Calouste Gulbenkian. Licenciada em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, exerceu a actividade de designer de comunicação na administração pública e em actividade privada. Blogue da investigação: http://paisagem-invisivel.blogspot.com/ E-mail: design.luisacosta@gmail.com
2 PRESS, M./COOPER, R. El diseño como experiencia–el papel del diseño y los diseñadores en el siglo XXI. Gustavo Gili, Barcelona 2009, pp. 16-17.
3 MELO, A. Globalização cultural, Quimera, Lisboa 2002, p. 104.
4 JULIER, G. La cultura del diseño, Gustavo Gili, Barcelona 2010, p. 161.
5 Ponto 1 do Artigo 2.º: Definições –"Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial" Disponível em http://www.unesco.pt/pdfs/cultura/docs/conv_pati.doc (18.12.2010)
6 Ibidem.
7 FORTUNA, C. Identidades, percursos, paisagens culturais, Celta Editores, Oeiras 1999, p 58.
8 FLUSSER, V. O Mundo codificado -por uma filosofia do design e da comunicação, Cosac Naify, São Paulo 2007, p. 58.
9 "Humanist Manifesto" Wikipedia, The Free Encyclopedia. http://en.wikipedia.org/wiki/Humanist_Manifesto (12.09.2013)
10 ICOMOS - Declaração de Québec sobre a preservação do "Spritu loci" 2008.
http://www.international.icomos.org/quebec2008/quebec_declaration/pdf/GA16_Quebec_Declaration_Final_PT.pdf (24.12.2010)
11 HERNÁNDEZ, J.B./TRESSERRAS, J.J. Gestion del património cultural, Ariel, Barcelona 2007, p. 185.